Imagine um Brasil onde, ao acionar um posto de saúde, uma pessoa com mandado de prisão ativo é identificada instantaneamente no sistema com integração de dados. Onde placas de veículos suspeitos são reconhecidas em qualquer cidade, mesmo que estejam a centenas de quilômetros do local onde o crime foi cometido. Onde o CPF usado para alugar uma casa é cruzado automaticamente com bancos de dados policiais, judiciais e fiscais. Onde até uma conta da Netflix pode ajudar a localizar um criminoso foragido.
Parece ficção científica. Mas está mais próximo da realidade do que se imagina.
Muralhas, câmeras e sistemas que não se falam
Em diversas cidades brasileiras, já existem sistemas robustos de videomonitoramento e inteligência policial. O Smart Sampa, em São Paulo (SP), é um exemplo. Gerido pela Guarda Civil Metropolitana, monitora a cidade com milhares de câmeras e usa dados em tempo real para apoiar ações de segurança. Outras cidades utilizam plataformas conhecidas como Muralha Digital — embora operadas por guardas municipais diferentes, essas prefeituras que adotaram o mesmo sistema acabam compartilhando o mesmo banco de dados, permitindo o intercâmbio de informações como placas suspeitas, alertas de procurados e histórico criminal em comum.
Mais recentemente, o Governo de São Paulo lançou a Muralha Paulista, sistema gerenciado pela Polícia Militar com foco estadual. Ou seja: temos Polícia Federal com seus próprios sistemas, polícias militares com os seus, guardas municipais com os seus — e todos operando de forma fragmentada, sem um elo central de comunicação.
A consequência?
Criminosos podem escapar simplesmente mudando de cidade, estado ou esfera de atuação policial.
O futuro possível: sistemas únicos, integração de dados e vigilância preditiva
A tecnologia já permite. O que falta é vontade política e confiança entre as instituições.
Se os sistemas da Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, Guardas Municipais, além de empresas privadas como Uber, iFood, Netflix, locadoras de veículos, imobiliárias, operadoras de energia, laboratórios de saúde privada, SUS, cartórios, entre outros, fossem integrados sob um modelo seguro, ético e com controle de acesso, o Brasil poderia contar com um dos sistemas mais eficientes de prevenção e investigação criminal do mundo.
Com isso, bastaria o uso de um CPF, uma placa, um número de telefone ou um cadastro em aplicativo para ativar alertas automáticos e rastreamento inteligente, cruzando dados em tempo real com monitoramento por câmeras, sensores e bancos de dados.
O que trava tudo isso? A política — e a confiança entre instituições
Apesar da viabilidade técnica, a construção de um sistema nacional de integração esbarra em disputas políticas e na falta de confiança entre esferas federais, estaduais e municipais.
A questão central não é apenas quem cria o sistema, mas quem controla os dados. E mais: quem tem permissão para acessá-los, e como isso é fiscalizado.
Historicamente, houve vazamentos de informações sensíveis cometidos por agentes públicos, o que gerou receio institucional na hora de compartilhar bancos de dados. Casos de venda de informações pessoais, CPF de vítimas, dados de investigações sigilosas e até acesso indevido por policiais com finalidades pessoais foram noticiados em diferentes esferas. Situações como essas fragilizam a proposta de unificação se não forem acompanhadas de um rígido sistema de controle de acessos e punições claras.
Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018) estabelece regras fundamentais sobre o tratamento de dados pessoais por entidades públicas e privadas, com base nos princípios da necessidade, finalidade, transparência e segurança.
A LGPD também tipifica como infração grave o uso indevido de dados pessoais, e, no caso de agentes públicos, as consequências podem incluir sanções administrativas, responsabilização civil e até penal, além de perda da função, conforme previsto em outras leis, como a Lei de Improbidade Administrativa e o Código Penal Brasileiro.
Para que um sistema de segurança totalmente integrado funcione com segurança e legitimidade, seriam necessários mecanismos como:
- Autenticação forte (biometria, autenticação em dois fatores, geolocalização);
- Controle por níveis de acesso, conforme a função do agente público;
- Registro completo de logs e auditoria permanente;
- Rastreamento de cada consulta feita no sistema;
- Penalidades reais e aplicadas com rigor, inclusive com responsabilização criminal por vazamento de dados.
Um exemplo claro: as polícias militares e guardas municipais têm como missão o policiamento ostensivo e preventivo — não investigativo. Portanto, o acesso a dados sensíveis provenientes de bancos privados ou investigações deve ser restrito às polícias judiciárias, como a Polícia Civil e a Polícia Federal.
Isso evita o uso indevido de informações, combate a corrupção interna e respeita os limites constitucionais de cada força de segurança.
Gradual, escalável e descentralizado: o modelo federativo ideal
A proposta de integração total não exige uma estrutura centralizada. Pelo contrário: a estratégia ideal é permitir que cada município, estado ou órgão federal desenvolva e mantenha seu próprio sistema, com a possibilidade de interligação técnica com os demais.
Essa abordagem traz duas grandes vantagens:
- Respeita o pacto federativo e a autonomia entre os entes da federação — União, estados e municípios mantêm seus próprios dados e estruturas, conforme suas competências;
- Evita sobrecarga orçamentária — cada ente arca com os custos do que opera, sem transferir responsabilidade financeira para os demais.
Na prática, isso significa que:
- A União não paga pelos sistemas dos estados ou municípios;
- Os estados não subsidiam estruturas da União ou de prefeituras;
- Os municípios não assumem gastos de manutenção de bases estaduais ou federais.
Esse modelo descentralizado e cooperativo permite que a integração ocorra por adesão técnica, e não por dependência financeira, fortalecendo a capacidade local, reduzindo custos e assegurando que cada esfera tenha acesso proporcional à sua função e competência legal.
Integração de dados com empresas privadas já é possível — e inevitável
Empresas como Uber, iFood, Airbnb, locadoras de veículos, operadoras de energia, Netflix, bancos, imobiliárias e laboratórios de saúde privados, portarias controladas detêm dados estratégicos sobre milhões de brasileiros. Em vez de serem obstáculos, podem — sob regras legais e fiscalização rígida — ser aliadas da segurança pública, desde que o acesso às informações seja limitado, supervisionado e utilizado exclusivamente por órgãos com competência investigativa.
A própria Netflix, por exemplo, passou a restringir o compartilhamento de contas por IP residencial — algo que, em um futuro próximo, pode ajudar a comprovar permanência de um suspeito em determinado local. Da mesma forma, laboratórios e clínicas particulares registram dados de exames, presença física e atualizações cadastrais com frequência, que podem ser relevantes em casos de investigação com autorização judicial.
Além disso, sistemas de aluguel de imóveis, consumo de energia, movimentações financeiras, aplicativos de transporte e entregas, redes sociais, registros de atendimento no SUS, entre outros, são fontes de rastreabilidade que, integradas com autorização legal, podem revolucionar o enfrentamento ao crime organizado, à lavagem de dinheiro, ao tráfico de pessoas e a outros crimes complexos.
É importante reforçar: esses dados não seriam acessados por empresas ou agentes comuns, mas apenas por instituições públicas de segurança com perfil autorizado, dentro de processos auditáveis, e respeitando a legislação vigente, como a LGPD.
E mais: essa rede de dados não precisa ser construída de uma só vez. Ao contrário: a inteligência dessa proposta está na criação de uma base flexível e escalável, onde novos sistemas — públicos ou privados — possam ser incorporados gradualmente, conforme critérios técnicos, jurídicos e de segurança.
A verdade é que os sistemas já existem. O que falta é conectá-los com propósito, segurança e responsabilidade.
Conclusão: integração de dados mais do que possível, é necessário — e seguro
A integração total dos dados públicos e privados no combate à criminalidade não é apenas possível — é necessária. Mas ela precisa ser construída com ética, segurança, respeito à lei e foco exclusivo no interesse público.
O Brasil tem tecnologia. Tem bons exemplos. Tem ferramentas. O que falta é:
- Coordenação nacional real, e não disputa entre esferas;
- Confiança institucional mútua, com mecanismos de proteção e fiscalização;
- Vontade política de priorizar a segurança da população, e não o capital eleitoral.
Se bem implementado, o sistema não só funciona, como protege os dados, evita abusos e salva vidas.
O crime já opera em rede.
Está na hora de a segurança pública fazer o mesmo.